leitura de ETÍLICO
Texto do escritor S. Soares
Em fluxo de consciência, um professor, depois de um encontro de domingo com amigos em seu apartamento, regado à cerveja e whisky (duas doses, apenas, o detalhe seria importante?) sofre um surto que o leva a escrever freneticamente. Assim é anunciado na abertura da obra. O que esperar de uma pessoa numa situação dessas? Etílico, do escritor José Wildzeiss, é o romance que inaugura sua trilogia O rasante da ratoeira, trazida a público pela OIA Editora. A partir da situação inusitada descrita — que me instigou a virar a página e prosseguir — parto em busca de minhas certezas literárias e do mundo, afinal gosto da Literatura e gosto de pensar que conheço o mundo. Eis que na primeira página sinto-me intimado, desafiado, posto em xeque. Você não tem coragem, diz, ou melhor, escreve o narrador em estado de surto, à esposa grávida que dorme. Tomei para mim essa proposição. E entrei no jogo. E o jogo que o autor propõe, com seu narrador em estado especial (esqueça surtado! Algo maior, gigante, acontece aqui), me leva a uma viagem inesquecível.
Minhas certezas literárias e de mundo foram desafiadas uma a uma. O jogo, no entanto, se deu de forma cavalheiresca, um duelo de nobres, pois assim me senti tratado pelo texto elegante, visceral, às vezes apoteótico de José Wildzeiss.
E como ele desafia minhas certezas? Eis o inusitado no jogo: transgressão!
Entrei viciado e acomodado na concepção de romance ao ter Etílico à mão. Sai curado e incomodado ao virar a última página. Curado de certezas que tomei para mim, ao longo da vida, do que seria um romance. Tanta gente das Letras e fora delas já teorizou e o definiu, não é mesmo. O autor transgride! E ao fazê-lo, esmigalha meu ídolo de mármore envelhecido, enfeite em minha velha estante de livros. Ele ressignifica a ideia de romance. Transgride através da linguagem, promovendo uma conversa dialética entre o escritor, o narrador e o leitor. Mas não é justo pensar na noção de dialética platônica ou hegeliana. Talvez dialógica? Não me importo! Ainda me faltam termos para enquadrar uma obra tão incômoda. Tomara que continuem faltando, piscaria Foucault para nós.
E o incômodo aqui consiste na sua concepção filosófica: não parado, em movimento.
As linhas de Etílico põem-me em movimento do pensar e do sentir, fazendo-me coparticipante do surto do professor escriba na madrugada de uma segunda-feira.
Ao dirigir a palavra escrita à esposa grávida que ressona no quarto, o anônimo narrador me pega pela mão e me leva a uma aventura pelas cavernas da psique humana. Não se trata de uma divina comédia. É outra coisa. Veja isso:
às vezes eu sou como as pessoas convictas e não quero que o inconsciente fale comigo por meio de símbolos.
As frases curtas ou longas enfrentam o estatuto, a mesquinhez dos manuais de escrita criativa e de ortografia e gramática das escolas do século XIX que ainda grassam entre nós. Transgridem o não pode!
Wildzeiss maneja as palavras de forma a provocar os meus próprios surtos. Surtos epifânicos, surtos confirmadores, surtos subversivos.
A conjunção da escrita com a situação mental do narrador é algo espetacular. Há coragem ali em dialogar com a contemporaneidade pós-moderna da Literatura e das Artes em geral.
Wildzeiss, prosador e mestre em semiótica, sabe o que está fazendo. Eu, leitor de tudo que devia e não devia, sou tomado pela coragem que Etílico apresenta.
Etílico ensina o que é Literatura de alta qualidade na pós-modernidade. Ensina o poder que as palavras têm dispostas com inovação e transgressão. Por isso o efeito de incômodo, de movimentação desta minha cabeça de leitor.
Psicanálise, cultura popular e erudita, memórias afetivas, política vista à distância (é melhor para ver o conjunto), escrutínio do atual, projeções de futuros incertos. Este é o arsenal disparado contra mim. Não! A favor de mim!
A sensação de que isto já aconteceu comigo é permanente. Como a sensação de desejo diante do inusitado que poderia ter acontecido.
Este professor anônimo que viaja pelas estradas de terra e pedra da consciência me mostrou o que é possível fazer na Literatura. Não é surto! É lucidez! Lucidez sobre si e sobre o mundo.
O universo de Etílico transgride também a noção de espaço geográfico. Vila Formosa é apenas uma desculpa para revelar a territorialidade desse novo mundo ainda a ser descoberto chamado consciência.
atinjo nesta madrugada o direito a reviver tudo com as palavras e de parar o tempo da subsistência e ficar na dedicação exclusiva disto numa aposentadoria poética compulsória. o direito a fazer prosear como os gênios e os célebres.
Eloquente, não é? E que tal o capítulo inteiro assim:
Agora vou fumar.
Viu? É disso que estou falando.
O professor escriba de apergaminhados soa como uma espécie de mestre sem discípulos, um Zaratustra que nem desceu a montanha, mas observa o espaço-tempo com olhos de coruja. Ele me observa ao dirigir as palavras à esposa. Irônico e verdadeiro, desvelando as suas e as minhas verdades.
Saio da aventura que é ler Etílico com muitas dúvidas sobre mim e o mundo. Viva! A suspeita filosófica venceu!
Certezas? Algumas.
José Wildzeiss é um dos talentos que traz à Literatura brasileira possibilidades de uma prosa poética necessária e corajosa, em tempos de pandemia e de pandemônio. Outra: a Literatura vale a pena. Vale a pena com que se escrevem as proezas observacionais deste narrador em estado de lucidez ampla. Por fim, a certeza de poder continuar apreciando a transgressão que a trilogia O rasante da ratoeira promete. Etílico,grandiloquente e intimista, é apenas o começo. E ao mesmo tempo, solução final.
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