leitura de ANJOS BURACOS PEDRAS E MOINHOS
Texto de S. Soares
Um livro de crônicas, pelo que se sabe, promete a leitura rápida, aquela que fazemos de forma displicente, para nos distrair no ônibus ou no consultório do terapeuta.
Um livro de crônicas promete um vínculo com o fato, com o acontecido, de forma que queremos ser levados a crer na realidade da história, ignorando o literário, o poético que ali se apresenta.
Um livro de crônicas promete nosso riso contido ou escancarado, nossa boca aberta de deslumbre, nosso olhar para o teto do ônibus ou do consultório. Mas será que promete um olhar para dentro de nós?
ANJOS BURACOS PEDRAS MOINHOS, da escritora Betânia Moura, promete e entrega tudo isso. Missão cumprida pela cronista!
No entanto, ao saborear as trinta crônicas oferecidas em banquete, recebi mais, muito mais das promessas desejadas. Descobri a fome que estava em mim. Fome conformada de um leitor que se habituou com expectativas ditadas pelos cânones acadêmicos e de botequim. Descobri minha fome enquanto ela era saciada.
Fome de quê?
Betânia Moura conta ou reconta sim o cotidiano, o fato, o cronos, a partir de seu olhar de leitora do mundo e de escritora poética de linhas.
Descobri que eu tinha fome de metáforas estrondosas. Metáforas que ressignificassem o fato, o cronos, o meu cotidiano. Saboreei.
Os fatos que desfilam pelas páginas desta obra me fizeram apreciar, no banquete de palavras, o feminino apresentado com sua materialidade poucas vezes observada. Vai além dos discursos necessários dos feminismos contemporâneos. O feminino em ANJOS BURACOS PEDRAS MOINHOS é substancial, tangível, suculento como uma manga com O gosto e o sumo. Feminino que se desnuda num éden da Literatura, ao trazer Clarice Lispector como tema, intertexto, personagem, amiga num chá. Escrita nua e de pureza madura, sem pudores juvenis ou transgressões midiáticas de costumes. Mas plena de louvor à loucura. Escrita nua na presença de Marina Abramovic, de Carolina Maria de Jesus, da cozinheira Zulmira, de Virginia Woolf e da moça que ri dos tombos que levamos (todos, todas e todes) nas ruas esburacadas da existência. É o feminino existente com odores, texturas, rugas, maciezes, durezas.
A obra é aberta por uma ode a este feminino visceral em Aquela que não tem nome. Crônica-espetáculo! Coragem em forma de linhas que descortinam o que virá pela frente, prometendo e entregando a além-crônica.
A escritora-leitora entrega também, no banquete sem mesa posta, à greco-romana, seus livros, seus filmes, suas peças teatrais, suas danças com lobos ou com uma barata. Artistas antropofagizados em minha leitura faminta. A referência daquilo que eu já conhecia, emocionou-me. E daquilo que eu não conhecia, faz-me faminto.
O objeto livro tratado com devoção, perseguido por Um cão farejador. E Rubem Braga bem ali, à espreita.
Conhecedora dos mitos dos povos, Betânia Moura insiste em dar o necessário valor às ancestralidades do humano, normalmente mofadas em tempos de velocidade desmedida de pensamentos e ações. Calma! Os pratos devem ser saboreados devagar. Em suas receitas apetitosas, culturas milenares são justapostas em ressignificâncias contemporâneas de nossos cotidianos. Gregos e quéchuas trazem seus pratos ancestrais em Umbigo do mundo. Neste momento meu olhar vai para o teto do ônibus, buscando lembrar do que sou feito. Humano, de húmus, da mãe-terra molhada, orgástica e criadora.
Existência, existência, existência! A autora grita esse argumento ao longo da obra. Suas crônicas exalam odores, perfumes, azedumes, suores de uma Fortaleza de eterno verão. Calor que esculpe uma lista de desejos de todos nós em Hoje senti vontade. E meus desejos de vida aumentando ao longo da leitura. Fome!
Betânia Moura confirma decisivamente, com seu ANJOS BURACOS PEDRAS MOINHOS, a tradição da vigorosa e de alta voltagem poética da Literatura produzida no nordeste brasileiro.
Crônicas devem divertir, ajudar a passar o tempo, emocionar, mas os trinta textos oferecidos fizeram mais: aproximaram-me de uma escrita feminina que transcende a idealizações. Emoção que faz os olhos se fecharem no ônibus ou no consultório do terapeuta em A boa morte. Betânia Moura me deu vontade de fazer uma declaração de amor a mim, que estou en-velho-e-sendo.
Movimento, mutações, memórias e a ressignificação de tudo isso são os temperos dos pratos!
Saboreei!
A Literatura brasileira contemporânea sai saciada do banquete. Uma estética engrandecedora e modelar do que nós, leitores e leitores-escritores, temos fome. O atrevimento poético de Betânia Moura ensina a preparar os pratos.
E ela própria, enquanto mulher que escreve, oferece-se antropofagicamente na crônica que dá título à obra. Seus pensamentos são o prato principal. Aqui cabe um ritual tupinambá.
O convite está feito. Sirva-se! Saboreie a nossa humanidade em meio a ANJOS BURACOS PEDRAS MOINHOS.
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